1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, faz-se importante consignar que o artigo 226, §8 da Constituição Federal ao estabelecer a responsabilidade do Estado na criação de “mecanismos para coibir a violência no âmbito” das relações domésticas, criou, intrinsecamente, obrigações ao Congresso Nacional a fim de criarem normas que visassem estabelecer, especificamente, proteção às pessoas vulneráveis que compõe as relações domésticas.

À vista disso, promulgou-se a Lei n. 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, deliberando sobre os “mecanismos para coibir violência doméstica e familiar contra a mulher”, dispondo, aliás, acerca da criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e outras disposições.

Por certo, a aludida Lei ao objetivar proteger a mulher contra qualquer ação ou omissão[1] baseada no gênero, isto é, ser vítima de algum tipo de violência, dentre as quais podem se caracterizar a física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral[2] buscou protege-la do agente que, propositalmente, promove alguma (as) destas formas de violência contra ela. Logo, tem-se que os delitos perpetrados contra a mulher e que se enquadram na Lei em questão, devem, necessariamente, ser cometidos intencionalmente, servindo-se o agente da modalidade dolosa[3], restando-se inaplicável a conduta caracterizada como culposa.

Esclarece-se que nos crimes culposos[4] o agente causa um resultado por imprudência, negligência ou imperícia, sendo incompatível com o que preceitua a Lei Maria da Penha ao basear a prática do delito necessariamente contra o gênero feminino. Ora, como seria possível provocar, culposamente, uma conduta criminosa em desfavor da mulher em âmbito doméstico, ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto (na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida), em razão do gênero?

Claramente não seria possível! Explico.

Para que se tenha por executado o delito é imprescindível a presença da vontade livre e consciente do agente. Assim, como alguém pode ofender (por qualquer modo) o gênero de outrem, e, portanto, ser punido em razão desta conduta, se não quis o resultado ou não assumiu o risco para tanto?

Aproveitando-se o ensejo, imperioso alicerçarmos ao presente o entendimento manifestado por Renato Brasileiro de Lima.

[…] se se trata de violência de gênero – de se notar que o próprio art. 5º, caput, faz referência à qualquer ação ou omissão baseada no gênero -, deve ficar evidenciada a consciência e a vontade do agente de atingir uma mulher em situação de vulnerabilidade, o que somente seria possível na hipótese de crimes dolosos.[5]

Ressalte-se que, mesmo utilizando termo “agressor” para designar aquele que exerce algum tipo de violência sobre a mulher, é válido apontar que tanto pode ser um homem (heterossexual), como outra mulher[6] (homoafetiva).

Outrossim, em que pese o alarmante número de casos de violência presenciados ou cometidos clandestinamente no ambiente doméstico[7], é válido salientar que, em boa parte destes, a vítima vai até a delegacia especializada em crimes contra mulher (caso exista na localidade) ou em outra que possa ser atendida, registra o Boletim de Ocorrência – por vezes, ao declarar o ocorrido a Autoridade Policial, a mulher manifesta seu interesse em representar contra o agressor – e acaba por reatar seu relacionamento com o agressor, desejando, assim, retirar a representação ofertada perante a Autoridade Policial.

Nesta toada, seria possível retirar a representação ofertada pela vítima perante a Autoridade Policial? É o que se delineará nas linhas subsequentes.

 

2 DAS MODALIDADES DE AÇÕES PENAIS

Ainda que seja muito comum não se adentrar no mérito das modalidades de Ação Penal previstas na legislação pátria, é de sumamente imperioso destacá-las, mesmo que superficialmente, vez que conhecer as nuances de cada uma é necessária para compreensão das suas possibilidades.

De acordo com o Código de Processo Penal são modalidades de Ação Penal: ação penal pública; ação penal pública condicionada; ação penal privada; ação penal privada subsidiária da pública.

Concernente à ação penal pública, é certo que se trata de modalidade de ação penal com maior incidência na Justiça Criminal, haja vista ser tida como a regra. A APP, assim como a APPC (ação penal pública condicionada), serão promovidas por denúncia[8] do Ministério Público. Caso não seja intentada dentro do prazo legal, caberá ao ofendido ou a quem lhe representar (CADI[9]) a apresentação da queixa-crime[10], surgindo, deste modo, a APPSP (ação penal privada subsidiária da pública).

Conforme apresentado, a ação penal pública é a regra, porém estar-se-á diante da ação penal privada nos casos em que a lei expressamente declarar ser privativa do ofendido[11]. Ressalta-se que o ofendido/CADI ou seu representante legal tem o prazo de 6 (seis) meses, a contar do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, para a propositura da ação penal privada.

Por derradeiro, no que tange à ação penal pública condicionada, verifica-se que, mesmo tratando-se de titularidade do Ministério Público, é imprescindível a representação do ofendido, do seu representante legal, ou, em caso da sua morte ou declarada sua ausência por decisão judicial, do CADI.

Outrossim, nos moldes como ocorre na ação penal privada, a ação penal pública condicionada à representação deverá estar taxativamente presente nos crimes de sua alçada, assim como o prazo decadencial para a realização da representação é de 6 (seis) meses.

 

3 DA REPRESENTAÇÃO CRIMINAL

Do ordenamento jurídico vigente no Brasil é possível extrair diversas normas que buscam tipificar comportamentos tidos como prejudiciais à sociedade, de modo que, para impedir sua prática são estabelecidas sanções compatíveis, cada qual de acordo com a gravidade do delito, a atuação do agente, o bem jurídico atingido, dentre outras circunstâncias.

Ademais, para que sejam apuradas a práticas criminosas, é comum que os agentes policias após informados do fato, dirigirem-se ao local do fato, onde de imediato iniciam a investigação. Normalmente, os crimes previstos no Código Penal e noutras legislações são apurados de ofício pela Autoridade Policial, no qual, após devidamente apurado o fato e colhidos os elementos de prova, elabora-se o relatório contendo todas as informações do Inquérito Policial e encaminha-se ao Órgão do Ministério Público para que seja promovida a ação penal.

Segundo o princípio da Oficiosidade:

As autoridades públicas incumbidas da persecução penal devem agir de ofício, sem necessidade de provocação ou de assentimento de outrem. O abrandamento é dado, novamente, pelos casos de ação penal de iniciativa privada (CPP, art. 5º, § 5º) e de ação penal pública condicionada. A regra não impede a provocação dos órgãos públicos por qualquer do povo, conforme o Código de Processo Penal, art. 27. [12]

            Conforme aduzido anteriormente, a regra é que as ações penais sejam públicas e de titularidade do Ministério Público. Todavia, com um percentual reduzidíssimo em relação aos crimes de ação penal pública (propriamente dita), a legislação penal prevê a ação penal pública condicionada à representação[13].

Na ação penal pública condicionada à representação, o Estado concede àquele responsável em efetivar a representação o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da persecução penal (inclusive, de iniciar o Inquérito Policial ou outra modalidade de processual penal administrativa). Aliás, esta situação visa evitar outros danos à vítima, além daqueles, já suportados pela prática criminosa, sendo este o principal fundamento para a previsão desta modalidade, somando-se ao fato de que alguns delitos adentram, estritamente, na esfera do interesse particular do ofendido.

Nos crimes objetos desta modalidade de ação, contudo, faz-se necessária a manifestação perante[14] o Juiz, Ministério Público ou Autoridade Policial, para que se dê o início do competente Inquérito Policial. Nestes termos, Norberto Avena aponta:

de acordo com o art. 5.º, § 4.º, do CPP, o inquérito policial, nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, não poderá sem ela ser iniciado. Por representação, também conhecida como delatio criminis postulatória, compreende-se a manifestação pela qual a vítima ou seu representante legal autoriza o Estado a desenvolver as providências necessárias à investigação e apuração judicial dos crimes que exigem essa formalidade. Não se exige rigor formal na sua elaboração, sendo suficiente que contenha a inequívoca intenção de ver apurada a responsabilidade penal do autor da infração. Pode ser oferecida diretamente ao delegado de polícia, ou, então, ao Ministério Público e ao próprio juiz de direito, que, nesse caso, requisitarão o inquérito ao delegado. Se realizada de forma oral, será reduzida a termo (art. 39, § 1.º, do CPP).[15]

            Consigna-se que, de acordo com o entendimento já devidamente pacificado jurisprudencialmente, não se faz imprescindível a representação formal e escrita da representação para que se proceda a instauração do Inquérito Policial, bastando simples declaração da intenção do ofendido ou de alguém que tenha capacidade para representá-lo[16][17] no Boletim de Ocorrência[18].

Deste modo, o procedimento administrativo criminal seguirá seu curso normal, nos moldes da ação penal pública incondicionada.

Ressalta-se que, encaminhado o relatório policial balizado pelos elementos de prova ao Ministério Público, este órgão formando sua opinio delicti, procederá: (i) requerendo arquivamento do Inquérito Policial; (ii) propondo a ação penal ou; (iii) devolvendo os autos à Autoridade Policial para novas diligências.

Logo, não se tem por obrigatória a propositura da ação penal, quando feita a representação. Todavia, proposta a ação penal, não poderá o Ministério Público desistir[19].

Neste tópico, foram trabalhadas as questões relativas à representação, no que concerne à vontade do ofendido em intentar a ação penal em desfavor do agressor, porém, seria possível, após realizada a representação, desistir do seu propósito inicial e retirá-la a fim de não prosseguir com a investigação criminal ou com a ação penal?

 

4 DA (IM)POSSIBILIDADE DE RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO CRIMINAL PELA OFENDIDA NOS CRIMES SUBMETIDOS À LEI MARIA DA PENHA

Conforme demonstrado nos tópicos precedentes, observa-se que, para se dar início à persecução penal, para alguns crimes, é imprescindível, ou melhor dizendo, é requisito obrigatório a manifestação do ofendido, do seu representante legal ou do CADI.

Entretanto, é possível que em alguns momentos o ofendido reflita sobre o caso e as consequências criminais que porventura possam decorrer de uma eventual condenação criminal e decide se retratar da representação ofertada perante o Juiz, Autoridade Policial ou Ministério Público.

É certo que o Código de Processo Penal em consonância com o que dispõe o Código Penal autoriza, para os crimes em gerais que servem-se da ação penal pública condicionada à representação, o ofendido a se retratar[20] da representação até o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

Nos crimes submetidos à Lei Maria da Penha contra a mulher em âmbito doméstico, ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto (na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida), ocorre de modo diverso. Explico.

Em que pese o artigo 16 da Lei Maria da Penha autorize a ofendida a renunciar[21] à representação (reitero a apontar que a representação é feita somente nos crimes de ação penal pública condicionada), é certo que, nos moldes já devidamente interpretados pela doutrina e jurisprudência, houve um impropriedade do legislativo na redação deste dispositivo legal, devendo, portanto, lê-lo como “retratar” à representação[22], e não renunciar.

Deste modo, por exemplo, no crime de ameaça previsto no artigo 147[23] do Código Penal, como se trata de crime sujeito à ação penal pública condicionada, dependendo da representação da ofendida, caso esta exerça seu direito em representar contra o agressor, e depois entende por bem desistir, é possível mediante retratação.

É válido destacar que, diferentemente com o que ocorre nos crimes exteriores, quando se está diante da aplicação da Lei Maria da Penha, a retratação deve, necessariamente, ser feita antes do recebimento da denúncia e em audiência especialmente designada com tal finalidade perante o Juiz. Assim, a contrario sensu, após recebida a denúncia, a ofendida não mais pode se retratar, prosseguindo o feito penal normalmente.

 

5 CONCLUSÃO

No decorrer do presente artigo, pode-se denotar os diversos modelos de ação penal previstos no ordenamento jurídico pátrio, adequando-se a cada qual nos determinados delitos, apresentando-se como regra geral a modalidade ação penal pública.

Todavia, para os fins deste, delimitou-se uma análise mais profunda acerca da ação penal pública condicionada à representação, tornando-se possível que a vítima, seu representante legal ou outros atores previstos em Lei – que foram devidamente demonstrados – pudessem, observando as circunstâncias de oportunidade e conveniência, promover a representação perante o Juiz, Autoridade Policial e Ministério Público.

De outro modo, como é de conhecimento notório, em muitos momentos de crises e confrontos nos relacionamentos afetivos, é possível que ocorra algum modo de violência de uma parte contra a outra e, após realizada a representação para que se inicie a persecução penal, a ofendida, reatando com o agressor, ou mesmo por interesse próprio, define-se por desistir do seu direito exercido e retratar-se da representação visando o encerramento do procedimento penal instaurado.

Demonstrou-se, deste modo, a real possibilidade de a ofendida se retratar da representação ofertada, de tal sorte que este ato deve ser manifestado impreterivelmente até o recebimento da denúncia, perante o Juiz, em audiência especifica.

[1] O termo agressor é definido no dicionário como “aquele que agride, ataca”, caracterizando, para fins de aplicação desta Lei, aquele sujeito que profere xingamentos, ameaças, violência física ou de qualquer outra forma, em detrimento da vítima.

[2] Artigo 5º, da Lei 11.340/2006.

[3] Artigo 7º da Lei 11.340/2006.

[4] Artigo 18, inciso I, do Código Penal.

[5] Artigo 18, inciso II, do Código Penal.

[6] P. 908

[7] Neste caso, o entendimento que prevalece é de que a mulher que realiza violência sobre a outra, deve, necessariamente, ter uma condição de superioridade sobre a vítima, colocando-a em condições de hipossuficiência e vulnerabilidade (STJ, 3ª Seção, CC 88.027/MG, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 18/12/2008). Neste sentido “[…] os requisitos cumulativos de relação íntima de afeto, motivação de gênero e situação de vulnerabilidade. Isso porque, para a incidência da Lei 11.340/2006, exige-se a presença concomitante desses requisitos. De fato, se assim não fosse, qualquer delito que envolvesse relação entre parentes poderia dar ensejo à aplicação da referida lei. Nesse contexto, deve ser conferida interpretação restritiva ao conceito de violência doméstica e familiar, para que se não inviabilize a aplicação da norma. HC 175.816-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 20/6/2013).”

[8]https://noticias.r7.com/sao-paulo/a-cada-dois-minutos-uma-mulher-e-vitima-de-violencia-domestica-20092019<Acessado em 18 de Março de 2020>

[9] De acordo com o artigo 46, CPP, para o oferecimento da denúncia o Órgão Ministerial tem o prazo de 5 (cinco) dias nos casos de réu preso, e 15 (quinze) dias nos casos de réu solto.

[10] Cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

[11] Na ação penal privada e na ação penal privada subsidiária da pública, o prazo para o oferecimento da queixa-crime é de 6 (seis) meses. Porém, no primeiro caso conta-se da data em que vier a saber quem é o autor do crime, e no segundo caso, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia, nos termos do artigo 38 do CPP.

[12] Artigo 100, caput, do CP.

[13] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal / Fernando Capez. – 23. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016. P. 74 e 75.

[14] Esta modalidade de ação penal deve estar prevista taxativamente nas disposições do delito apurado.

[15] Artigo 39, §2º, do CPP.

[16] AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. – 9.ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, P. 129.

[17] De acordo com o artigo 39, CPP, o direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial.

[18] De acordo com o artigo 24, §1º, CPP, No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

[19] “[…]1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a representação nos crimes de ação penal pública condicionada à representação não exige maiores formalidades, bastando que haja a manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal, demonstrando a intenção de ver o autor do fato delituoso processado criminalmente. Precedentes. 2. Na espécie, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ressaltou que, na primeira oportunidade em que foi ouvida, a genitora da menor deixou expressamente consignado o desejo de representar contra o autor do fato criminoso. Além disso, ponderou que a lavratura do Boletim de Ocorrência e o atendimento médico prestado à vítima deveriam ser considerados com verdadeira representação, pois contêm todas as informações necessárias para que se procedesse à apuração da conduta supostamente delituosa. Diante disso, concluiu estar demonstrado o desejo de submeter o acusado à jurisdição criminal, em harmonia com a orientação desta Casa” (AgRg no HC 233.479/MG, DJe 02/02/2017).”

[20] Artigo 42, do CPP.

[21] Artigo 102, do CP c/c Artigo 25, do CPP.

[22] O termo renúncia deve ser tecnicamente utilizado quando o individuo ainda não exerceu o seu direito. No caso em estudo, como o ofendido já manifestou previamente seu desejo em representar contra o agressor, o termo correto é retratar, isto é, arrepender-se de um exercício anterior de um direito (exercício do direito à representar nos crimes de ação penal pública condicionada à representação).

[23] LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada – 3ª ed. rev. ampl. e atual. – Editora JusPODIVM, 2015, P. 933/934.

[24] Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

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